quarta-feira, 16 de maio de 2012

Náufragos, salvo a arte.

Sentaram-se os dois. Havia um pouco de mormaço naquela manhã de abril. O ar pesava dentro do bar escuro. Uma luz de neon se repetia, meio frívola, anunciando o nome do bar, o N não ascendia direito e parecia apenas um garrancho iluminado. Os dois se olhavam nos olhos, como que hipnotizados por aquele momento. Ela não se continha de paixão. Ele não se continha de descontentamento. Ele chamou o garçom. A cerveja caiu alaranjada de neon no copo. Brindaram sem saber a quê exatamente. Ela regressou a sua solidão, havia demasiada ilusão em seus momentos e os lábios dele refletiam desdenho na borda do copo. Ele não achava que ela tinha o direito de sentir nada. Aquele corpo meio disforme, aos seus olhos, aquele sorriso, meio disforme, aos seus olhos... Ele era um artista. Amado por mulheres lindas e jovens e lindas e jovens... Ela não tinha o direito. Ela quase ouve seu pensamento. Sentiu um desdenho. Ele tão disforme, salvo a arte. Ele tão disforme em suas exigências, salvo a arte. Ele com os olhos meio tortos, incrustados numa pele enrugada e macilenta, o arco da sobrancelha de aspecto cômico, como um palhaço que chorava. A boca enviesada como um arlequim... Salvo a arte. Ela, coração ígneo, avistou da proa a terra... Os sonhos dissolveram no ar... Na língua um gosto de cerveja e pó, do que se desfez... O neon sucumbiu. Algum Sol rompeu o mormaço, o bar foi inundado de uma luz exigente. Ele opaco... Ela faminta. Havia de fato um mistério horizontal... Calaram-se num sorriso meio trôpego, enterrando numa vala no fundo do oceano, todo o descontentamento... Salvo a arte.

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